sábado, 6 de fevereiro de 2016

Pasolini louco por futebol

                            Pasolini na produção de Teorema



Há no futebol momentos que são exclusivamente poéticos: trata-se dos momentos de golo. Cada golo é sempre uma invenção, uma subversão do código: cada golo é fatalidade, fulguração, espanto, irreversibilidade. Precisamente como a palavra poética. Por Pier Paolo Pasolini.

Amante de futebol, adepto ferrenho do Bolonha, clube da sua cidade natal, Pasolini dissertou linhas sobre um dos maiores espetáculos planetários, num artigo escrito 'Linguagem do Futebol' pouco depois da final do Mundial de 70, ganha pelo Brasil. Fica aqui partilhado um pensamento muito próprio e curioso, em que o polémico intelectual italiano transpõe os signos da escrita para o futebol, tornando visível a sua cumplicidade com a estética do jogo, exemplificando a elegância de alguns artistas e o pragmatismo de outros. De meter inveja a imensos cronistas e comentadores. 
Ainda discorrendo sobre esta intensa paixão de Pasolini,  autor de Saló e Teorema, o realizador ganhou um apreço descomunal pelo capitão do Bolonha, Bulgarelli. «Quando o conheci foi como se tivesse visto Jesus Cristo», disse, exaltando um jogador que dedicou toda a carreira ao Bolonha, ajudando na conquista do título de 1964. Faleceu em 2009 e na cidade foi decretado pela primeira vez um dia de luto. O nº 8 que ostentava em campo foi retirado pelo Bolonha. Pasolini convidou-o a ser um dos protagonistsa do seu filme documentário Comizi d'Amore.



Prosa e poesia

[Gianni] Rivera [médio italiano que disputou a final do Mundial de 1970, contra o Brasil] joga um futebol de prosa: mas a sua prosa é poética, de “elzevir”.

Também Mazzola [João José Altafini. Jogou pelo Palmeiras e pela seleção brasileira, sendo campeão em 1958. Depois transferiu-se para a Itália e naturalizou-se italiano, chegando a jogar pela seleção na final do Mundial de 70 contra o Brasil] é um prosador elegante e poderia até escrever no “Corriere della Sera”, mas é mais poeta que Rivera: de vez em quando ele interrompe a prosa e inventa, de repente, dois versos fulgurantes.

Note-se que não faço distinção de valor entre a prosa e a poesia; a minha distinção é puramente técnica.

Entretanto entendamo-nos. A literatura italiana, sobretudo a mais recente, é a literatura dos “elzevires”: os escritores são elegantes e, no limite, estetizantes; a substância é quase sempre conservadora e meio provinciana… Em suma, democrata-cristã. Todas as linguagens faladas num país, mesmo as mais especializadas e espinhosas, têm um terreno comum, que é a cultura desse país: a
sua atualidade histórica.

Assim, justamente por razões de cultura e de história, o futebol de alguns povos é fundamentalmente de prosa, seja ela realista ou estetizante  (este último é o caso da Itália); ao passo que o futebol de outros povos é fundamentalmente de poesia.

Há no futebol momentos que são exclusivamente poéticos: trata-se dos momentos de golo. Cada golo é sempre uma invenção, uma subversão do código: cada golo é fatalidade, fulguração, espanto, irreversibilidade. Precisamente como a palavra poética. O melhor marcador de um campeonato é sempre o melhor poeta do ano. Neste momento, [Giuseppe] Savoldi [jogador do Bolonha, do Nápoles e da seleção italiana] é o melhor poeta. O futebol que exprime mais golos é o mais poético.

A finta é também essencialmente poética (embora nem sempre, como a ação do golo). De fato, o sonho de todo jogador (compartilhado por cada espectador) é partir da metade do campo, fintar os adversários e marcar. Se, dentro dos limites permitidos, é possível imaginar algo sublime no futebol, trata-se disso. Mas nunca acontece. É um sonho (que só vi realizado por Franco Franchi [1922-92, um dos principais nomes do cinema cômico italiano] nos “Mágicos da Bola”, o qual, apesar do nível tosco, conseguiu ser perfeitamente onírico).

Quem são os melhores “fintadores” do mundo e os melhores fazedores de golos? Os brasileiros. Portanto o futebol deles é um futebol de poesia – e, de fato, está todo centrado na finta e no golo.

A retranca e a triangulação é futebol de prosa: baseia-se na sintaxe, isto é, no jogo coletivo e organizado, na execução racional do código. O seu único momento poético é o contrapé seguido do gol (que, como vimos, é necessariamente poético).

Em suma, o momento poético do futebol parece ser (como sempre) o momento individualista (drible e gol; ou passe inspirado).

O futebol de prosa é o do chamado sistema (o futebol europeu). Nesse esquema, o golo é confiado à conclusão, possivelmente por um “poeta realista” como Riva, mas deve derivar de uma organização de jogo coletivo, fundado por uma série de passagens “geométricas”, executadas segundo as regras do código (nisso Rivera é perfeito, apesar de Brera não gostar, porque se trata de uma perfeição meio estetizante, não-realista, como a dos meio-campistas ingleses ou alemães).


                             Bertolucci e Pasolini


O futebol de poesia é o latino-americano. Esquema que, para ser realizado, demanda uma capacidade monstruosa de fintar (coisa que na Europa é esnobada em nome da “prosa coletiva”): nele, o golo pode ser inventado por qualquer um e de qualquer posição. Se a finta e o golo são o momento individualista-poético do futebol, o futebol brasileiro é, portanto, um futebol de poesia. Sem fazer distinção de valor, mas em sentido puramente técnico, no México [em 1970] a prosa estetizante italiana foi batida pela poesia brasileira.

Fabio Capello sobre Pasolini: «Pier Paolo tinha uma paixão verdadeira pelo futebol. Era talentoso, jogava na ponta, tinha velocidade, sabia driblar e podia envolver os outros, dentro e fora do campo, com a sua personalidade. Nos conhecemos no final dos anos 60, e me causou uma grande impressão: era leve, quase tímido, mas muito agradável e com uma grande cultura. Ele tinha verdadeiro interesse por muitas coisas, e entre elas, claro, o futebol. Ele via o futebol como a vida»





Bulgarelli





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